Uma operação deflagrada pelo Ministério Público de São Paulo na terça-feira (12) prendeu os empresários Sidney Oliveira, dono da rede de farmácias Ultrafarma, e Mario Otávio Gomes, diretor do grupo FastShop. Dois auditores fiscais também foram presos: Artur Gomes da Silva Neto e Marcelo de Almeida Gouveia.
De acordo com o Ministério Público, o objetivo do esquema era agilizar a liberação de créditos tributários em troca do pagamento de propinas para agentes públicos. As investigações começaram em fevereiro, após indícios de rápido enriquecimento de uma empresa sem atividades registrada em nome da mãe do auditor Silva Neto. Há suspeitas de que outras empresas do varejo também estejam envolvidas no esquema de propina a auditores.
Casos como esse não são novidade. Neste texto, o Nexo conta outros exemplos de corrupção que já envolveram auditores e como é possível coibir práticas criminosas de agentes.
O que faz um auditor fiscal
O trabalho de um auditor fiscal é fiscalizar a arrecadação de tributos e evitar, assim, sonegações fiscais. Para isso, ele atua sobre pessoas físicas e jurídicas de acordo com políticas tributárias aplicadas a cada esfera: municipal, fiscalizando a arrecadação de tributos como ISS (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza) e IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) estadual, atuando sobre tributos como IPVA (Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores), ITCMD (Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos) e ICMS (Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual) federal, acompanhando a arrecadação de impostos sobre diferentes setores, como renda, previdência pública e privada e comércio exterior.
Cabe aos auditores fiscais lançar os chamados créditos tributários, fiscalizar o destino das arrecadações e investigar possíveis fraudes tributárias com instauração de procedimentos administrativos, análises de documentos, inspeções e até apreensão de bens.
Os agentes ainda podem emitir autos de infração, aplicando penalidades ao contribuinte. A depender da esfera de atuação, também podem investigar crimes de contrabando e descaminho em trabalhos conjuntos com o Ministério Público, a Polícia Federal e tribunais de contas.
Fraudes fiscais em troca de propinas
No caso do esquema revelado na terça (12), os agentes presos na Operação Ícaro eram auditores fiscais da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Segundo as investigações, Silva Neto era o principal articulador do esquema e facilitava o ressarcimento de créditos do ICMS de forma rápida e, por vezes, com aumento dos valores.
O ICMS é aplicado sempre que um produto circula (seja entre indústria e revendedor ou varejo e pessoa física), gerando uma tarifa que deve ser paga ao Estado – o que impacta o valor final da mercadoria. Para evitar o acúmulo do mesmo imposto durante toda a cadeia de produção e consumo, empresas podem pedir o ressarcimento dos créditos tributários à Fazenda.
A solicitação de ressarcimento exige análises e revisões fiscais, o que não é feito de forma rápida. Mas, no esquema envolvendo a Ultrafarma e a FastShop, os auditores se encarregavam da documentação e buscavam acelerar a restituição aos empresários. Também impediam a revisão do processo por outros agentes fiscais. Em troca, recebiam propina.
R$ 1 bilhão em propinas podem ter sido recebidos pelo auditor fiscal Silva Neto desde 2021, segundo estimativas informadas pelo promotor de Justiça João Ricupero a jornalistas na terça (12)
Apesar de ser ilegal, a prática não é nova. Em 2013, uma investigação concluiu um esquema de desvios milionários na prefeitura de São Paulo que culminou em condenações, em abril de 2017, de dois ex-auditores municipais à prisão por lavagem de dinheiro.
No caso, as apurações demonstraram que construtoras pagavam propinas para auditores fiscais da prefeitura paulistana em troca da agilização de processos de quitação de impostos de ISS e consequente certificação de obras de habitação.
R$ 500 milhões foi o prejuízo aos cofres públicos causado pela fraude de empreiteiras junto ao fisco de São Paulo, como mostrou o jornal O Globo em 2017
R$ 1,17 milhão em propinas foram recebidos por um dos auditores para liberar o alvará de uma empresa de construção, como o site G1 informou em 2019
No mesmo ano das condenações do caso paulistano, a Polícia Federal investigou um caso semelhante no Rio de Janeiro. Em fevereiro de 2017, a Operação Calicute teve como alvo o agente estadual Ary Ferreira da Costa Filho, acusado de garantir vantagens fiscais a empresários – como perdão de multas por sonegação de ICMS – em troca de pagamentos indevidos.
Na época, o Ministério Público Federal apontou Costa Filho como o principal operador de uma quadrilha ligada ao ex-governador do Rio, Sérgio Cabral (ex-MDB, agora sem partido), que comandava esquemas de fraudes fiscais na Fazenda estadual em benefício de empresários.
O papel das corregedorias
Assim como deveria acontecer – mas não aconteceu – nos processos protocolados por Silva Neto, auditor preso no caso da Ultrafarma e FastShop, todos os procedimentos fiscais passam pelo crivo de outros agentes para a prevenção de falhas e possíveis fraudes.
Se há indícios de desvio de conduta no serviço, as corregedorias de fiscalização tributária podem ser acionadas. Além de fiscalizar os procedimentos conduzidos por auditores e instaurar investigações, a corregedoria tem competência para acompanhar a evolução patrimonial dos agentes.
Segundo o auditor fiscal Miguel Arcanjo Simas Nôvo, presidente da Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), as corregedorias conduzem em sigilo boa parte das investigações de corrupção de auditores fiscais, antes do encaminhamento do caso para a esfera penal e conhecimento da sociedade. Se confirmadas as suspeitas, o agente é demitido e passa a responder criminalmente.
Investigações administrativas também podem alcançar servidores aposentados. “Não é porque está aposentado que pode cometer um crime. Se lá na frente ficar comprovado que o agente agiu de forma contrária à lei, sua aposentadoria será cassada, certamente, e perde-se o vínculo com o Estado”, afirmou Nôvo ao Nexo.
Como mostrou a Agência Brasil, a Secretaria da Fazenda de São Paulo disse que abriu processo interno para investigar a conduta dos servidores e vai colaborar com a investigação do Ministério Público por meio da Corregedoria da Fiscalização Tributária.
A defesa de Silva Neto procurou o Ministério Público com interesse em propor uma delação premiada, com o objetivo de atenuar a pena do acusado.
As prisões realizadas até agora na Operação Ícaro são temporárias, decretadas pela Justiça por cautela pré-processual – ou seja, para evitar novos crimes durante as apurações. Os investigados podem responder por corrupção ativa e passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro.
Como coibir novos casos
Na visão de Nôvo, da Anfip, há uma diminuição de casos como o da Ultrafarma e da FastShop ao longo dos anos – em boa parte por conta do fortalecimento do trabalho de corregedorias e do avanço de ferramentas de fiscalização. No entanto, o combate à corrupção em auditorias fiscais passa pelo enfrentamento de quem já conhece e acompanha as atualizações dos procedimentos internos – e por isso, “podem tentar explorar eventuais fragilidades”.
“Algumas condutas ilícitas são planejadas de forma sofisticada e disfarçada, o que pode retardar sua detecção. Por isso, muitas vezes, o início formal da investigação ocorre apenas quando surgem indícios concretos”
Para ele, coibir novos casos envolve duas medidas: o aumento da contratação de servidores nas corregedorias e em auditorias internas, e o fortalecimento de tecnologias de cruzamento de dados e sistemas de alerta. “É preciso criar um ambiente no qual a irregularidade seja percebida como de alto risco e baixa recompensa”, acrescentou.
Fonte: Nexo Jornal.