O projeto que prevê a legalização do jogo é adequado?

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Não. Porta aberta para a criminalidade
Vilson Antonio Romero*
 
A perspectiva de abertura de mais de 60 cassinos e quase 6.000 bingos -e de autorizar mais de 300 operações do jogo do bicho- fez 246 deputados (menos da metade dos 513) olvidarem os impactos negativos e o custo social do projeto de lei 442/91.

Até a tragédia da serra fluminense entrou no parecer quase chantagista do relator ao, no momento derradeiro, incluir entre mais de uma centena de artigos a destinação de 5% da Cide-Jogos -de módica alíquota de 17%- para “ações de reconstrução de áreas de risco ou impactadas por desastres naturais e ações para construção de habitações destinadas à população de baixa renda remanejadas de áreas de risco ou impactadas por desastres naturais”. O projeto de lei passou, apesar da oposição quase ecumênica (católicos e evangélicos) de órgãos de segurança e controle das contas públicas e de médicos e terapeutas.

Num debate precário, com atuação parlamentar híbrida, a derrubada do decreto-lei 9.215/46, do então presidente Gaspar Dutra, não põe por terra as premissas fulcrais: “A tradição moral, jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração de jogos de azar e que, (…) daí, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes”.

No outro lado, está o pântano da “money laundering”, ou a lavagem de dinheiro, que é “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal” (lei 12.683/12).

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) alertou no início do século que esses delitos do crime organizado, em conluio com tráfico de drogas e armas, prostituição e corrupção, movimentam mais de US$ 2 trilhões anuais no planeta e servem para financiar, entre outras coisas, terrorismo e armas de destruição em massa.

O Brasil não dispõe de recursos humanos e tecnológicos para estancar a sanha criminosa, agudizada pelo tráfego digital de valores e criptomoedas, onde a ação dos cibercriminosos na “dark web” já não tem controle. Sem contar a ludopatia, já incluída pela Organização Mundial da Saúde na Classificação Internacional de Doenças (CID). Soba CID-10-Z72.6 (mania de jogo e apostas) e a CID-10-F63.0 (jogo patológico) estão embutidos custos sociais já estimados pelo professor Earl Grinols, da Baylor University (EUA), em “The Hidden Social Costs of Gambling” (“Os Custos Sociais Ocultos do Jogo”).

Um ludopata, além de destroçar patrimônio e universo familiar, pode custar ao Estado mais de US$ 9.000 anuais per capita -ou, a cada dólar arrecadado, três serão gastos com custos sociais. Segundo estimativa do movimento Brasil sem Azar, poderão, em pouco tempo, ser mais de 100 mil jogadores compulsivos no Brasil, com um custo elevadíssimo no tratamento e recuperação.

Com esses argumentos, alio-me à CNBB, à Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajur) e a dezenas de movimentos sociais que rejeitam a proposta.

Mesmo que haja agência reguladora, cadastro de jogadores, tributação de prêmios e rateio com entes subnacionais, os multimilionários de Atlantic City, Las Vegas e Oriente Médio criarão um “Estado paralelo” fora da lei, com um custo social muito maior que a liberação poderia propiciar em turismo, empregos e arrecadação neste Brasil tão desigual.

Há outras prioridades, como tributar lucros e dividendos, as grandes fortunas ou reduzir a regressividade fiscal. Mas a decisão caberá aos 81 senadores: o Brasil abrirá, de fato, a porta para a jogatina oficial incentivada e a criminalidade?

(*) Jornalista e auditor fiscal aposentado, é presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip).

Fonte: Folha de S.Paulo