Gilson Nascimento – RJ
Bodega de parco sortimento. Nas prateleiras, rústicas e mal acabadas, enlatados, garrafas de bebidas, três cachos de pitomba, bananas mirradas, amadurecidas a força do carbureto, e um depósito de vidro com bolachas.
Além do balcão, alguns sacos com arroz, feijão, milho, farinha e açúcar mascavo. Em cima do balcão, uma bacia com água meio turva para o mergulho ligeiro – arremedo de lavagem – de alguns copos, já maltratados pelo uso.
– O senhor está em dia com a Previdência, meu amigo? perguntei ao proprietário, recorrendo ao nome constante de sua ficha, depois de ter me apresentado como fiscal.
– Em dias? Estou lá nada doutor. Eu não estou em dias nem com a vida, que dirá com o instituto. Era até bom se eu tivesse, mas cadê dinheiro pra pagar?Como ele tinha um empregado, pedi-lhe a folha de pagamento relativa aos meses de débito.
– Folha de pagamento? Tenho não senhor.
A fuga ao presente, as agruras da vida, o apego a lembranças antigas foi imediato:
– O tempo tá vasqueiro seu fiscal.
Das lembranças às palavras foi um passo apenas:
– Tempo bom – e abriu um largo sorriso – eu quando era pixote e rapazinho, morando com meu pai lá na fazenda dele, lá pelas bandas de Quixeramobim. Tinha os passeios no meu alazão, o namoro com as caboclas, os forrós. Quando apuro as oiças, escuto ainda o som da sanfona do mestre Chicó.
Sertanejo, como ele, foi-me fácil imaginar um retalho dos seus dias de felicidade.
Mês de maio. Chuvas fartas, de açude abarrotado de peixe dando cangapé no sangradouro. O sertão, ao milagre da chuva, esbanjava verde de todos os tons. Os riachos cantavam nas grotas, e seu Alexandre, levando a juventude no galope de seu cavalo fogoso às compras na mercearia de seu antônio, uma das mais sortidas da vila. A namorada lampeira, rindo à sua pose de cavaleiro. Aqui e ali, a parada: a sombra, o dedo de prosa, o caneco d’agua, o gole de café.
– Está sonhando seu fiscal? – perguntou-me o homem, espantado.
E continuou:
– Veja ai o que tenho de pagar, só não sei é quando esse dinheiro vai chegar no instituto. Os negócios, eu já lhe disse, estão muito vasqueiros.
– Veja ai o que tenho de pagar, só não sei é quando esse dinheiro vai chegar no instituto. Os negócios, eu já lhe disse, estão muito vasqueiros.
Neste instante, o fiscal, que se sensibiliza com a vida difícil de seu Alexandre, mexeu também com lembranças envelhecidas. E o durão, o cumpridor da lei, rendeu-se ao emotivo.
Guardei na pasta o formulário de T.V.D. e o bloco de rascunho que eu ia utilizar para, com base no salário mínimo, levantar o débito de arbitramento, e expliquei:
– Seu Alexandre, vou deixar sua fiscalização para outro dia; tenho ali um caso mais urgente.
O homem não entendeu. Olhou-me meio espantado:
– Ai vai, Zezinho – disse ele – dirigindo-se ao seu empregado – esse fiscal tem o coração mole, já guardou os papéis que tinha catado na pasta.
Preferi não responder, mas ele continuou:
– Tá certo, mas antes de ir embora, tome um refresquinho. É feito com água filtrada e por mim.
Comprou um “mercado” de alegria ao passado que já aludira, riu o riso dos felizes, limpou o suor do rosto com um lenço encardido e puído e abriu a geladeira.
Quando saí, as sombras da tarde já banhavam a rua. O céu, com um sol de raios esmorecidos, vestia as cores temas do crepúsculo. Plantei-me na esquina à espera do ônibus. Através da voz roufenha de um rádio o sambista ratificava a filosofia do bodegueiro:
“Há dias que a gente sente/ No nosso destino mandar/ mas eis que chega a roda viva/ E leva o destino para lá”.