As dificuldades da ação fiscal

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Os fatos que vou narrar ocorreram no início dos anos sessenta, na cidade de Visconde do Rio Branco, localizada na Zona da Mata mineira, cuja economia era fortalecida pela agro-indústria açucareira, alimentada pelos fornos de três usinas de açúcar. No mais, a agricultura e a pecuária geriam o progresso da região, pródiga em políticos influentes: deputados, senadores e até governador do Estado.

O desenvolvimento econômico da região, inclusive, recomendou a instalação de uma Agência do IAPI, que pagava pontualmente os benefícios dos segurados. Em consequência, a Previdência Social era razoavelmente aceita, e a fiscalização encontrava um bom campo para o seu trabalho.

Entre as pequenas indústrias daquela cidade, havia uma cerâmica de tijolos furados, instalada à beira dos trilhos da Estrada de Ferro Leopoldina, há vários anos em funcionamento, passada do pai para o filho.

Como é óbvio, a cerâmica tinha que ser submetida à fiscalização regular e rotineira previdenciária. Naquela oportunidade, era fiscal de previdência, em Visconde do Rio Branco, jovem egresso do Rio de Janeiro, após ter-se submetido a concurso público, que lhe deu acesso à carreira. Seu nome era Celso Baraúna. jovem inteligente, tímido, pouco comunicativo, veio para Minas Gerais disposto a se realizar na nova função, com ânimo e coragem. Lotado em Visconde do Rio Branco, para lá se transferiu, dedicando-se às tarefas fiscais, até que…

Em certo dia no mês de setembro, deixou o hotel onde se hospedava, dirigindo-se à cerâmica, obedecendo às instruções que recebera da chefia superior. Chegando ao estabelecimento industrial, passou a fazer a verificação física dos empregados encontrados trabalhando, após as apresentações indispensáveis ao gerente do estabelecimento. O trabalho inicial foi fácil, pois o estabelecimento possuía apenas seis empregados, todos registrados e regularmente inscritos. O pagamento de suas contribuições, porém, estava em atraso. Necessário foi convocar o proprietário da empresa — firma individual , para os esclarecimentos necessários.

Qual não foi, então, a surpresa do jovem fiscal, quando chegou o empresário, que logo passou a agredi-lo verbalmente, expulsando-o do estabelecimento sob ameaças de agressão física. Outra alternativa não teve o agredido, senão a de fugir da fúria descontrolada do empresário. Assim, apressadamente, correndo, deixou o estabelecimento, seguido do agressor, que tomou uma acha de lenha do eucalipto, de aproximadamente trinta centímetros de comprimento, atirando-a no fugitivo, nas costas, à altura da coluna cervical, derrubando-o.

Pessoas que passavam pelo local socorreram o fiscal agredido, levando-o ao hospital local, onde recebeu tratamento médico adequado nas lesões graves recebidas, que poderiam provocar sua invalidez. Felizmente, recuperou-se fisicamente.

O agressor ficou impune, protegido pelas forças políticas locais, sem que a administração previdenciária tomasse qualquer medida para punir o autor da agressão, de modo a garantir a ação da fiscalização, que passou a ser vítima e objeto de ironias de toda a sociedade local.

O fiscal agredido voltou à sua origem no Rio de Janeiro, conseguindo para lá transferir-se, funcionalmente, não mais voltando a Minas Gerais.

No exercício seguinte, novo fiscal foi lotado em Visconde do Rio Branco, cabendo a ele proceder à fiscalização de rotina das empresas, inclusive a da cerâmica questionada.

Aquela época, este narrador trabalhava na Delegacia do IAPI de Minas Gerais, cabendo-lhe tarefas especiais itinerantes. Nessas condições, coube-lhe informar processos fiscais e de benefícios na já falada Visconde do Rio Branco. Na sua visita à agência local, teve conhecimento da agressão sofrida pelo fiscal de Baraúna e do receio do novo fiscal em comparecer ao estabelecimento industrial, já que o comentário público era de que sua ação seria impedida.

Como é óbvio, essa ação fiscal era prioritária, sob pena da completa desmoralização do grupo, que não teria condições de prosseguir seu trabalho na região.

Ainda relativamente jovem, em plena força física, destemido, dedicado ao trabalho que honrosamente exerci, logo me dispus a ir ao estabelecimento questionado, em companhia do fiscal local, para fiscalizar a empresa rebelde.

Para lá nos dirigimos na manhã seguinte, caminhando pelo leito da linha ferroviária, e logo chegamos ao pequeno estabelecimento que tinha mais ou menos cem metros de área, com um forno de cozimento de barro, ao fundo, coberto de telhas, e à frente as bancadas onde trabalhavam os oleiros no trato com o barro escuro, já amassado, que depois de colocado nas formas se transformava em tijolos. Tudo rudimentar. Numa visão de olhos, contamos os seis operários que ali trabalhavam, que confirmavam as anotações de Ficha de Fiscalização da Empresa.

Abordados pelo empregado que nos pareceu ser o de maior responsabilidade no serviço, nos identificamos como Fiscais do IAPI. Indagado sobre a presença do proprietário e revelando nosso objetivo de fiscalizar a empresa, nosso interlocutor responde:

—      Moços, o patrão não gosta de fiscais. Ainda no ano passado ele pôs um para correr, o qual foi parar no hospital, E ele não está, saiu de caminhão para fazer a entrega de tijolos.

Respondi-lhe:

—      Somos de paz. Aqui não viemos para brigar, apenas queremos cumprir nosso dever. Diga ao Sr. Gustavo — esse o nome da “fera” — que iremos à Usina Açucareira, e que voltaremos antes do almoço. Peça-lhe para nos esperar.

No horário marcado voltamos à fábrica de tijolos furados. Logo na chegada, divisamos o Sr. Gustavo, que veio ao nosso encontro. Tratava-se de um jovem de trinta anos, forte, robusto, com aproximadamente um metro de noventa de altura e cem quilos de posa, um verdadeiro físico de lutador de luta livre. De aspecto sombrio nos atendeu, sem sorrisos.

Expus-lhe a razão de nossa visita. A de fiscalizar o seu estabelecimento, relembrando o episódio da agressão ao colega. Demonstrei-lhe que nada tínhamos contra ele, mas que tínhamos que cumprir nossa obrigação, sob pena da ação fiscal ficar desmoralizada.

De cabeça baixa, ele nos convidou para a sua casa, que ficava em local próximo, onde tinha todos os elementos de fiscalização. Concordamos com sua sugestão, pois, efetivamente, na indústria não havia condições de trabalho.

Na residência nos instalamos na varanda ampla, onde também estava estacionado o caminhão de sua propriedade. Para quebrar o gelo do encontro, pedi-lhe um copo de água, que ele prestimosamente foi buscar.

Nesse momento, chegou até nós um menino forte, parecido com o rosado e vivo, sem a sua perna direita, amputada à altura superior do fêmur, amparado por uma muleta, que não o impedia de se locomover.

Na sua volta, com o copo de água, o Sr. Gustavo nos revelou:

— Ele é meu filho. Manobrando o caminhão, não vi que ele estava atrás com a sua bicicleta, o atingi com a roda traseira do veículo, que esmagou a sua perna, que foi amputada. Meu desespero foi total. Justamente nesses dias, é que fui visitado pela fiscalização. Sem equilíbrio emocional, devendo contribuições atrasadas, com grandes despesas com o acidente, quase cheguei à loucura. Em todos via inimigos, e o pobre fiscal é que pagou pelo que não fez. Quando o vi na minha indústria, sem raciocinar, passei a agredi-lo. Arrependo-me da minha atitude. Sempre cumpri com minhas obrigações, e só um estado de desespero pode justificar o meu ato de insanidade.

Em resposta, constrangido, demonstrei-lhe as virtudes da Previdência Social e a necessidade de cumprir as leis existentes. Assim restabelecemos as boas relações que devem existir entre empresa e instituição, tendo o fiscal procedido à fiscalização da empresa com ampla normalidade, usando o empregador em débito dos favores do parcelamento vigente.

De tudo restou-me a consciência das dificuldades que o fiscal de previdência encontra no exercício de sua nobre função, dos riscos de seu trabalho no contato com a empresa, momento em que deve pôr à prova o seu conhecimento das leis, o seu equilíbrio emocional, o seu respeito à figura do empregador, de modo a permitir o êxito da sua missão, que é indispensável na realização da arrecadação, sem a qual não sobrevive a instituição.