Histórias fiscais

528

Ih! Meu Deus! Já é 29 de junho, e ainda não escrevi nenhuma história de Fiscal! Fiscal com F maiúsculo, porque merece respeito!

Será que ainda dá tempo de participar do concurso da ANFIP?

Bom. Vou começar de mim mesmo. Meu concurso foi o de 1954, no IAPI. Era mensageiro extranumerário, referência 1, admitido em janeiro de 1953, por concurso público. E para quem era funcionário, não havia limite de idade para fazer o concurso para Fiscal.

Eu estudava, fazendo o curso científico. Fiz minha inscrição ao concurso. Me desdobrei! Estudei até à luz de querosene. Sabe o que é isto? Era uma lamparina, feita de vidro azul de Leite de Magnésia Phillips. Com um ou dois L — O Philips? O fato é que as apostilas que o IAPI forneceu, e mais uns livros emprestados, me ajudaram a passar no concurso. E olha, muito companheiro bom, com curso superior e tudo, advogado, contador, não passou naquele concurso.

Mas, e para sair a nomeação! Meu Deus! Que luta!

Aqui em Minas Gerais, uns “caras” vieram trabalhar de Fiscal, sem ter feito concurso, aqui para Minas. Foram nomeados para outro Estado, mas ocuparam por uns tempos umas vagas daqui. E a nomeação não saía. Com o Juscelino — êta homem bom! — na Presidência, era uma parada torta! Logo logo depois, com o Jânio Quadros, as coisas foram mudadas, e saíram as nomeações de todos os concursados.

Para minha nomeação, primeiro, fui ao Rio de Janeiro, onde consegui a correspondência pedindo a nomeação, porque eu era o candidato da vez. Depois, fui a Brasília, reclamar os direitos de concursado. Em Brasília, no ano de 1960, quase sem dinheiro para o hotel, ganhei de presente a chave do apartamento de uma funcionária do ex-IAPI. A moça simpatizou por minha causa, foi dormir na casa de uma amiga, e me deu a chave do apartamento dela.

No Palácio do Planalto foi uma luta. Pois me disseram que, se eu tivesse um padrinho, a nomeação sairia. De outra forma, era difícil. Que nem um Dom Quixote, briguei, dizendo que tinha meus direitos. Quiseram me por fora do Palácio. Quiseram. Porque um Deputado, do Nordeste, cercou os guardas e disse que eu era um acompanhante dele. Que ele exigia respeito. E me levou para o gabinete dele. Ele e Deus que me per-

  1. Não tenho o nome dele anotado.

Era uma pessoa tipo Floriceno Paixão.

Me abraçou. Eu, com 23 anos de idade e cara de 17 — porque só mostrando os documentos, entrava no cinema para ver filme impróprio para menor de 18 anos. Me perguntou porque queriam me botar para fora do Palácio do Planalto.

Expliquei para ele que buscava minha nomeação de Fiscal, que não saía porque não tinha padrinho político.

Pois o homem deu uns telefonemas, e conversou, e ligou para a Imprensa Oficial. Esperei uns tempos. Me perguntou em qual hotel eu estava hospedado. Contei a história do apartamento. E ele me mandou esperar na porta do prédio, às 8 da manhã. Não discuti.

No dia seguinte, a Kombi “executiva” do Deputado me apanhou na porta do prédio, me levou à Imprensa Oficial. O motorista desceu da Kombi, me levou ao gabinete do Chefe de Imprensa Oficial, onde já estava separado, para mim, um exemplar do Diário Oficial, publicando minha nomeação!

E Deus, meu filho, meu amigo, que protege os puros de espírito, e os inocentes.

E foi assim que fui nomeado.

Mas dá para contar ainda um punhado de histórias. E não vamos parar por aqui.

Depois de nomeado, fui trabalhar em Curvelo, Minas Gerais, no ano de 1961. Terra quente. Ruas sem calçamento. Muita poeira. Terra de homens valentes. Bravos.

Longe da família, em terra estranha, longe de casa e da família, a gente inventava moda, para não ficar fechado no quarto de hotel, sozinho. Numa noite que consegui convite para conhecer o Clube chique da cidade, estranhei umas coisas diferentes nas paredes do Clube.

Tinha uns buracos nas paredes. Um punhado. Que estranho! Não resisti, e perguntei a meu anfitrião o que era aquilo.

— Ora. Não é nada, meu amigo. É que, no ano passado, um posseiro precisava de um médico para socorrer a mulher dele. O médico não estava em casa. Viera para um baile aqui no Clube. E o médico não queria sair da festa para socorrer a doente. Pois o posseiro sacou do revólver, deu uns tiros nas paredes e “convenceu” o médico a atendê-lo.

Ainda em Curvelo, fiscalizei uma padaria. Era de seis irmãos. Todos sócios com retirada “pro-labore”. Mas só um pagava IAPI. Fiz a notificação: um TVD — Termo de Verificação de Débito. A dívida era uma “nota preta”.

Pois aqueles irmãos, da padaria, passaram a me vigiar. Para saber para onde ia. E que dia eu sairia da cidade. E conseguiram saber quando eu terminei o serviço, e partiria para Corinto, uma cidade vizinha.

Na última noite de permanência em Curvelo, ia eu para o cinema, e vi a caminhonete da padaria. Aquela intuição que DEUS me deu me avisou do perigo. Com três saltos estava atrás de um poste, e mesmo assim a caminhonete quase me atropela. Só não aconteceu, para não se arrebentar no poste de luz.

Fui à polícia, apresentar “queixa”. Mas os irmãos tinham sumido. Saíram da cidade.

No dia seguinte, voltei à Delegacia de Polícia. Com o Delegado e dois soldados, fomos à padaria. Só estavam esposas ou irmãs dos sócios da firma.

Todo mundo estava sumido. Viajaram.

Não valia a pena ficar na cidade para ver se seriam presos.

Voltei para o hotel, Tomei um banho caprichado. Engraxei os sapatos para tirar o último grão de pó daquela terra, e parti para outra. Para Corinto — onde muita coisa me aguardava.

Naqueles tempos em que Fiscal sem revólver na pasta ou na cintura era o mesmo que menino sem canivete no bolso, ou bebê sem fr:.-ftla. Numa situação em que, bobeou, dançou…

Em Curvelo, me despedi do Jarbas, Agente do IAPI, e tomei o ônibus. Porque Fiscal não ganhava bastante para ter carro próprio.

Em Corinto, que tinha só uma rua com calçamento de pedra — o resto era terra, poeira mesmo, me esperavam grandes aventuras.

O Subagente do IAPI — lá existia era uma Subagência e era o Walter Santos — o “Varte”.

Que logo de início me avisou da história do último Fiscal que lá es¬tivera. Zeloso, trabalhador, o colega Fiscal fugira às pressas, da cidade, “caçado” por um dono de uma fábrica de tijolos.

Caçado mesmo. “Saída honrosa”, para não levar bala.

Pois resolvi começar a fiscalização na cidade em cima daquela “fera”

A olaria era fora da cidade. Na zona rural.

Não era fácil topar com o “home”.

Fiscalizei umas outras empresas. Dei duro. Com rigor. Para fazer fama de sério.

E um dia consegui topar com o homem da fábrica de tijolos.

Era já de noitinha. Umas seis e meia da tarde, e ele marcou para o dia seguinte às sete horas. Tinha que ser cedo, porque — disse ele — não podia deixar os empregados à vontade, no serviço.

No dia seguinte, quinze para as sete, estava eu na porta da casa do valente. Para ver as folhas de pagamento e as GRs — as guias de reco¬lhimento de contribuições.

Bato na porta. Uma fresta é aberta.

— Quem é o senhor?

Era uma voz feminina, macia e suave, de fazer gosto.

— Sou o Fiscal do IAPI. Vim fiscalizar.

— Ah! E? Meu marido teve que sair. Demora aí uma meia hora. Foi na olaria, que fica uns vinte quilômetros de distância, e volta, para con¬versar com o senhor. Mas entra e toma um café comigo, enquanto espe¬ra.

E entrei. Pôxa. Esperar uma meia hora, ou mais. Mas vou ficar, e enfrentar a fera.

A mulher, uma lindeza, saiu da sala.

Quando voltou, trazia uma bandeja com chícaras, o bule de café, uns pedaços de bolo e umas quitandas.

Mas não foi a chícara que me chamou a atenção. A lindeza estava de “penhoar”. Uma roupa toda aberta na frente, com botões para fechar.

Só que os botões não estavam abotoados. Tudo aberto. Nada de roupa debaixo.

Um corpo lindo, à mostra. Seios exuberantes, firmes, e tudo mais, livre e descoberto, oferecidos aos olhos do Fiscal.

Deus do céu! Uma beleza! Uma tentação!

Imaginem como ficou o coração e a “ferramenta” do Fiscal jovem, de vinte e quatro anos de idade. Recém-casado e longe da mulher há quase quinze dias!

O sorriso nos olhos da mulher, a boca sensual, ela toda, era um convite!

Mas, ah! a santa intuição, me fez levantar. E disse:

— Avisa seu marido que espero ele na Agência do Instituto hoje, sem falta, às duas da tarde! E que ele não atrase!

E saí.

Fora da casa, nem dei uns dez passos e topei com o homem.

— Uai. Não me esperou?

— Não. E o senhor sabe porque. Nós vamos nos encontrar é na Agência, hoje, às duas horas da tarde.

E saí caminhando, sem mais conversa.

Às duas da tarde, na Agência, lá estávamos eu e o oleiro. Com as folhas de pagamento e as guias do Instituto. Tinha um mês de atraso, que o homem pagou na hora, ali mesmo na Agência.

Não ficamos inimigos, e ganhei fama de valente.

Tem ainda umas outras histórias, lá de Corinto mesmo. E de Dia¬mantina, a gloriosa cidade do Juscelino Kubitschek. E de Pompéu. E de Abaeté. E de trinta e sete anos e meio de trabalho para a Previdência Social.

Histórias que ficam para depois.

Só para terminar passados muitos anos, voltei a Curvelo. A padaria já não existia mais. Mas os seis irmãos, sócios com retirada “pró-labore”, todos eles estavam “encostados” no Instituto. Recebiam todo mês o rico dinheirinho da aposentadoria.

A Previdência Social é um amparo para o trabalhador.

E tudo o que contei acima é a mais pura das verdades. Verdade verdadeira, que nem essas mãos que as escreveram e que um dia a terra há de comer…