Martiniano Quadros – Campo Grande (MS)
Junto a numeroso grupo de pessoas postado no meio da ampla avenida que separa Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, cidades brasileira e paraguaia respectivamente, parou o veículo procedente de Campo Grande, atual capital de Mato Grosso do Sul.
Motorista e passageiros desceram juntando-se aos curiosos. É que na via pública estava caído um homem contorcendo-se, boca retorcida, língua de fora expelindo esponjosa salivação. Explicaram os circunstantes que se tratava de um epiléptico, frequentemente vítima de semelhantes ataques convulsivos.
Aproximaram-se dois outros personagens, um deles arrastando um cachorro e outro com um pedaço de carne fresca nas mãos. Este esfregou aquela carne na boca e língua pastosas do padecente e a seguir jogou-a para o cachorro que, avidamente, a mastigou e engoliu.
Passados alguns minutos o doente levantou-se, sacudiu a poeira, limpou a baba e — para surpresa geral — saiu andando normalmente, como se nada houvesse acontecido.
Voltaram então à condução o motorista e os recém-chegados viajantes, entre os quais se encontrava o autor desta narrativa, impacientes por encerrar a exaustiva viagem de 24 horas que finalizava para os que por lá moravam e para os outros somente a primeira etapa.
Tratei de procurar hospedagem, uma pensão ou casa similar dentro das possibilidades, mínimas, face às minguadas diárias a que estava condicionado para alimentação e pousada. Em uma mansarda consegui um pequeno quarto, onde me instalei. Pedi à hospedeira — paraguaia quarentona — que me arranjasse uma toalha e me indicasse o banheiro. Informou, acrescentando em seu arrastado portunhol: “Usted tiene que sacar la água de aguei poço ali e carregá-la no valde grande em que hai un canecon para labar-se”. Assim procedi. Fazer o que? Podia ser pior.
Mais ou menos refeito da cansativa viagem, depois daquele banho, saí à rua para um rápido reconhecimento da praça onde travaria a primeira “batalha” fiscalizadora.
Colhi algumas indispensáveis informações, almocei e aguardei até as 14 horas para dar início aos trabalhos, momento em que por ali reiniciavam-se as atividades, já que acompanhavam a tradição da fronteira — uma sesta depois do almoço.
Antes, porém, de contar o que vi e o que fiz, julgo necessário um retrospecto da jornada desde o ponto de partida da mesma.
Até a metade do século para se ir a São Paulo ou dele vir, o único meio de transporte coletivo terrestre era a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, cortando parte do sul do Estado de Mato Grosso ainda não dividido, passando por Campo Grande, o maior núcleo populacional da região. Esta futurosa cidade, geograficamente privilegiada, constituía-se dessa forma no polo irradiador da área, prenunciando grande desenvolvimento nas atividades agrícolas e pastoris, que, notadamente nas décadas 40/50, expandiam-se com maior desenvoltura para os lados da fronteira com a República do Paraguai.
Nessa época já funcionava em Campo Grande uma agência do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC) jurisdicionada à Delegacia em Cuiabá, capital do Estado, da qual recebemos, então, a determinação para fiscalizar vários municípios, elegendo-se Ponta Porã, significativamente florescente, como prioridade.
Uma jardineira (caminhão com a carroceria adaptada para oito ou dez passageiros e pequenas cargas) efetuava o transporte “regular” de Campo Grande para Ponta Porã e vice-versa. Duas largas tábuas transversais com encostos de ripas, sem qualquer guarnição, serviam de assento para os viajantes.
Mais ou menos quatrocentos quilómetros separavam as duas localidades, com apenas duas paradas obrigatórias para almoçar e jantar, em lugares pré-estabelecidos, sem horários determinados, dependentes das ocorrências do percurso concluído a uma “velocidade” média de 25 quilômetros por hora…
Depois de percorridos cerca de 50 quilômetros de matas e cerrados abundantes de animais silvestres, apenas campos a perder de vista. A “estrada”, de chão, esburacada e poeirenta durante a estiagem, alagada e escorregadia nos dias e noites chuvosos.
Da segunda parada, para o jantar, em diante, viajava-se durante a noite toda, encolhidos, espremidos uns contra os outros, em agoniante expectativa de encontrar alguma povoação para tomar um café ou mesmo só para desenferrujar as pernas e quebrar a torturante monotonia.
Nos botecos onde eram servidas as refeições todos bebiam água no mesmo caneco de lata, retirada de um enorme pote de barro. Ainda bem que não se falava na existência de cólera ou qualquer endemia. Felizmente e graças a Deus a vida ainda era sadia.
Retomando o relato da missão que me levara àqueles rincões, iniciada em Ponta Porã, dei-me conta de que, pelo número de cadastros de empresas que portava e a avaliação que fizera por alto, teria sido fiscalizado apenas um terço do comércio pelos colegas que me precederam.
Sensatamente, então, fui à Sub-Inspetoria Comercial, onde consegui relacionar, com os elementos necessários, todas as empresas da jurisdição. Foi uma salvadora providência, com a qual ganhei tempo e segurança na execução dos trabalhos. Sem ela provavelmente ficaria tolhido nas ações e dependente dos escritórios de contabilidade, nem todos dispostos a colaborar, ou, pior, procurando embaraçar.
Esquematizado, parti para a luta, prudentemente removendo obstáculos que se apresentavam recalcitrantes, entre os quais, o mais relevante, o primordial, a falta de credencial não fornecida ainda pelo IAPC aos seus servidores. A ausência de identidade e uma hospedagem impropriamente condicionada constituíam-se em fatores negativos, psicologicamente constrangedores.
Entramos pela rua principal e, ao nos apresentarmos na primeira loja comercial, uma pitoresca surpresa. A um sinal do empregador duas moças, que ali se encontravam trabalhando, saíram sorrateiramente para a rua, esclarecendo o patrão que eram sobrinhas que o estavam visitando.
Ao sairmos, para adentrarmos a loja seguinte, notamos que de lá e das subsequentes várias empregadas deixavam o serviço dirigindo-se para o lado do Paraguai. Iam avisando-se em sequência, como se estivessem combinadas.
Voltei para a via pública e nem foi preciso perguntar nada; ao contrário, algumas delas é que me indagaram se eu iria permanecer alguns dias na cidade. Caso afirmativo, teriam umas férias. Evidentemente, tratava-se de uma tática usada pelos comerciantes quando um novo fiscal aparecesse na praça.
Diante daquela situação mudei o procedimento. Anotei nomes, endereços das casas onde trabalhavam, tempo de serviço, os respectivos salários e passei a fiscalizar os estabelecimentos alternadamente. Deu certo. Os sonegadores foram surpreendidos e a minha missão obteve positivos resultados.
Três metas precisavam ser alcançadas e/ou implementadas com essas providências: combater a sonegação carreando, obviamente, recursos para o cumprimento das finalidades previdenciárias, assegurar o direito trabalhista vinculado aos respectivos benefícios e, por conseguinte e simultaneamente, melhorar o desempenho dos nossos deveres.
Um dos colegas, que me precedera e cadastrara algumas empresas, usara uma estratégia que lhe pareceu mais fácil para ampliar sua produção na corrida contra o relógio. Valeu-se da circunstância do IAPC (criado em maio de 1934) preconizar, entre outros benefícios específicos, a concessão de empréstimos. Isso não passava de um engodo, pois jamais foram praticados. Inevitavelmente, cobraram-me a “promessa”. Com certo constrangimento, ocorreu-me informar aos interessados que tal procedimento havia sido diferido para um futuro breve, sob a alegação de que o assunto ainda dependia de estudos para a sua regulamentação.
Decorridos uns vinte dias, trabalhando incessantemente, conseguira dar cobertura a mais de dois terços das empresas.
Estava com os dedos calejados de tanto usar o lápis no preenchimento, de forma legível, dos termos de verificação de débitos, impressos em quatro vias, e com a cabeça doendo em consequência dos múltiplos cálculos realizados (calculadora eletrônica portátil? Não se sonhava, sequer, com a sua futura existência).
Em conversa com a dona da pensão fiquei sabendo que aquele epiléptico, mencionado no início desta narração, chamava-se Altamiro de tal, e era comerciante estabelecido em uma povoação denominada “Itaipu”, distante setenta quilômetros, acrescentando que um irmão dera possuía um “fordinho 29” e constantemente ia àquela localidade, como o faria no dia seguinte.
Aproveitei a oportunidade para, descansando, ir ao lugarejo e engrossar mais a minha produção. Foram duas horas de viagem no fordinho, nas quais ouvi estórias muito interessantes contadas pelo motorista. Conhecia o Altamiro e fôra ele quem lhe fizera a “simpatia” para a cura da epilepsia, um processo “infalível” aquele de passar a doença, com a carne, para o cachorro. E, entusiasmado, foi relatando outras curas que fizera através de “simpatias”. Ensinou-me “remédios” para diversos tipos de males, picadas de cobras e de insetos venenosos, dores de cabeça, sinusite, câimbras, dos quais fazia uso, nos dois últimos, com absoluto sucesso. Para sinusite, fazer inalação com água morna e sal; para câimbra nas pernas, amarrar um cordão (barbante) qualquer, não muito apertado, acima do tornozelo.
O Sr. Altamiro trabalhava sozinho em seu estabelecimento há oito anos e havia recolhido suas contribuições por intermédio dos colegas que me antecederam, estando em atraso apenas desde a última visita fiscal, ocorrida por volta de um ano e meio atrás. Pagou-me as que devia e conversamos a respeito de sua doença. Disse-me que depois da “simpatia” que eu testemunhara não teve mais ataques, que se sentia perfeitamente bem (realmente, “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”).
Visitei o restante do pequeno comércio (mais dez casas) e retomei a Ponta Porã, onde dei posse ao representante do Instituto, cuja nomeação chegara acompanhada de impressos destinados à arrecadação e benefícios a requerer.
Transmiti-lhe as competentes instruções e, não havendo mais tempo para nada, esgotado que estava o prazo determinado para o itinerário, encerrei minhas tarefas, regressando a Campo Grande.
Outras missões me foram confiadas para desempenho naquela região, que em parte já estava conhecendo, encontrando a cada uma que se sucedia mais facilidades (décadas 60/70), de vez que os proventos foram aumentando — enfim portávamos identidade funcional — e nossa autoridade fiscal estava consolidada.
Cabe aqui fazer menção aos fatores que permitiram, gradativamente, o aprimoramento da fiscalização: o advento da Lei Orgânica 3.807, de agosto de 1960, a fusão dos Institutos e a pavimentação e abertura de outras estradas, encurtando distâncias e gerando transportes mais regulares e confortáveis.
A par dos citados progressos, registre-se a fundação da Associação Nacional dos Fiscais de Contribuições Previdenciárias em 1950, acontecimento da mais alta relevância para os FCP. Não padece dúvida que à ANFIP deve a Previdência Social, dentro de sua conjuntural evolução, inequívoco e primordial papel em seu desenvolvimento, destacando-se, não só na defesa dos interesses dos seus servidores, como na dos segurados em geral, com sua permanente e eficaz participação junto à administração patrimonial da instituição.
Elegendo diretorias executivas das mais competentes e honradas desde a sua inspirada criação, a ANFIP tem plantado e, indubitavelmente, com dedicação, determinação e abnegação, colaborado na germinação das sementes da Previdência Social.