Os empregados domésticos sem Previdência Social (Álvaro Sólon de França)

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O trabalho doméstico é uma das profissões mais dignas, entre tantas outras, que são exercidas no Brasil. Por isso gostaria de usar este espaço para que refletíssemos sobre a realidade destes brasileiros e brasileiras, que laboram no interior das residências das famílias brasileiras.

Jovelina era uma empregada doméstica, como milhares de outras pelo Brasil. Trabalhou durante vários anos para a mesma família, ajudando a criar os filhos do casal, que hoje são pessoas bem sucedidas na sociedade. Jovelina era muito estimada por todos da casa. Todos a consideravam como um membro da família. Mas, toda esta consideração não foi suficiente para que seus patrões assinassem a sua carteira de trabalho e recolhessem as contribuições previdenciárias para que ela pudesse usufruir os direitos dos que são filiados à Previdência Social. Hoje, Jovelina mora num asilo mantido pela caridade alheia, e de seus antigos patrões nem visitas recebe. Eles fazem parte do passado. E o passado é um lugar distante. Esta é uma estória, mas bem que poderia ilustrar a realidade de milhares de pessoas que trabalharam durante toda uma vida como empregados domésticos e não tiveram a sua carteira assinada.

Todos sabemos que o Brasil é um país extremamente injusto nas relações sociais, principalmente com aqueles mais frágeis, que não têm força junto às esferas de decisão. Segundo dados do Programa Nacional de Amostragem por Domicílio – PNAD – referente a 2022, milhões de brasileiras e brasileiros estão excluídos da proteção previdenciária e não irão se aposentar nunca, assim como no infortúnio que os impeça de trabalhar ficarão na dependência de seus familiares ou da caridade alheia.

Dentre esses segmentos frágeis estão os empregados domésticos e sobre os quais gostaria de chamar a atenção da sociedade brasileira. Empregado doméstico é aquele trabalhador que presta serviço na residência de uma pessoa ou família. A atividade desenvolvida, no entanto, não pode ter fins lucrativos. No Brasil, segundo dados do PNAD, eles são 5,83 milhões sendo que, destes, 4,37 milhões não possuem carteira assinada e filiação à Previdência Social, ou seja, 74,95%. Estas pessoas trabalham sem a proteção social dentro dos lares brasileiros. Este é um dado negativo sob todos os aspectos: da cidadania, do respeito à dignidade humana e da relação entre pessoas civilizadas. Milhares de pessoas que criticam, com razão, a conduta de maus empresários e desrespeitam a proteção social dentro de seus lares. Infelizmente, podemos dizer que neste particular o Brasil ainda não saiu da senzala.

Mas, qual é o perfil dos brasileiros e brasileiras, sem proteção social? São milhões recebendo uma remuneração indigna de até meio salário mínimo por mês, sendo que a remuneração média dos trabalhadores sem Previdência Social é de R$ 941,00, ou seja, menor que um salário mínimo, sendo a sua maioria esmagadora composta de mulheres, numa demonstração clara que a falta de proteção social atinge de maneira brutal o gênero feminino. Merece destaque negativo que milhares são adolescentes, entre 15 e 17 anos de idade, e que não frequentam as escolas.

Os direitos dos empregados domésticos à proteção previdenciária estão assegurados na nossa Carta Magna, no parágrafo único do artigo 7o. O Ministério do Trabalho publicou, no Diário Oficial da União, a Instrução Normativa que detalha os procedimentos para o cumprimento da Lei 12.964/2014, que prevê multa de até R$ 805,06 para o patrão que não assinar a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) do empregado doméstico. Segundo a norma, a verificação do preenchimento da carteira ocorrerá “preferencialmente”‘ por meio de denúncia anônima, já que a Constituição Federal garante a inviolabilidade do domicílio. O que nos dá certeza de que não basta a garantia constitucional.

É primordial que a sociedade brasileira tenha a consciência de que a redução das nossas profundas desigualdades sociais começa dentro da nossa própria casa. Os milhões de empregados domésticos, sem proteção social, trabalhando dentro dos lares espalhados pelo Brasil, retrata o tamanho da injustiça social que nasce dentro das nossas residências e dissemina em todas as outras atividades da vida nacional. Urge que transformemos as senzalas que ainda existem no Brasil em lares onde o respeito ao contrato social e a dignidade não sejam meras figuras de retórica. Por isso conclamo todos os cidadãos que assinem a carteira de trabalho de seus empregados domésticos e proporcione a eles o direito inalienável da proteção previdenciária. Afinal a justiça social começa em casa.

Infelizmente, podemos dizer que neste particular o Brasil ainda não saiu da senzala.

* Álvaro Sólon de França – Presidiu o Conselho Executivo da ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – Autor dos livros A Previdência Social é Cidadania e A Previdência Social e a Economia dos Municípios. alvarosolon@uol.com.br