Desoneração de impostos beneficia os mais ricos, diz um dos pais do cashback

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O sistema adotado por vários países ao longo do século passado de dar benefícios tributários para determinados produtos beneficiou a parcela mais rica da população, não os mais pobres. Por isso, muitas economias optam agora por mecanismos de tributação personalizada: o imposto depende de quem consome, não do produto.

Os avanços da tecnologia permitem que o Brasil também siga esse caminho, se for aprovada a reforma tributária.

A afirmação é de Alberto Barreix, um dos autores da proposta do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) de criação do IVA-Personalizado. O IVA (Imposto sobre Valor Agregado) é o tributo que faz parte da proposta de reforma tributária que será apresentada pelo Congresso nas próximas semanas. No Brasil, o imposto personalizado tem sido chamado de “cashback (devolução, em inglês) do povo”.

Em entrevista à Folha, Barreix afirma que o Brasil pode implementar um sistema de devolução por meio de nota fiscal eletrônica ou de pagamentos às famílias, entre outras opções testadas internacionalmente.

Ele também diz que o novo sistema vai beneficiar o setor agropecuário, ao permitir o fim do imposto em cascata sobre os insumos dos produtores e a desoneração completa das exportações.

O especialista afirma ainda que, sem a adoção de um tributo semelhante ao que existe na Europa, será difícil concretizar o acordo entre Mercosul e União Europeia.

Barreix destaca que o Brasil foi o primeiro país a tentar adotar um imposto nesse modelo na América Latina, o atual ICMS, criado na década de 1960, mas que errou ao transformá-lo em um tributo estadual, com diversas legislações e múltiplos benefícios fiscais.

Ele veio a Brasília nesta semana para falar sobre o tema na Câmara, onde participou de evento realizado por Fenafisco, Anfip e Sindifisco Nacional, com apoio da Fenafim.

Muitos países que adotam o IVA reduziram a tributação de bens de interesse social. Por que vocês consideram que isso não ajudou os mais pobres?
O IVA foi inventado pelo fundador da Siemens. Ele se deu conta de que os impostos sobre as vendas traziam o que se chama de efeito cascata. Vai somando imposto sobre imposto. Então criou esse sistema, em que deduzo das minhas vendas o imposto das minhas compras.

O grande país que não tem IVA são os EUA, mas os EUA arrecadam com o “sale tax”, que é um imposto estadual, 2% do PIB. O Brasil arrecada 12% [na tributação sobre o consumo]. É um recorde. É muito para ter um imposto em cascata.

O IVA tem três virtudes. Se eu o uso com uma base ampla e uma taxa mais ou menos parecida para todos os bens e serviços, tenho neutralidade. Também é um imposto do comércio livre [as exportações são desoneradas] e de fácil administração. Estamos quase com o imposto perfeito.

Qual seria então o problema do IVA?
A inequidade. Tentou-se corrigir isso pelo que chamamos de solução universal. Se os pobres consomem 5% da renda com leite, desonero ou ponho taxa baixa para o leite. Em 2011, fizemos estudos em toda a América Latina. O que se observou é que os 20% mais ricos ficavam com 55% em média do valor total das desonerações. Quando a renda está concentrada, o consumo também está. Quando desonero, quem consome a maior parte desses bens são os ricos.

O IVA-Personalizado resolve essa questão?
A maioria dos países usou o sistema de desoneração universal. Nós propusemos outra coisa, tributar todas as vendas com o mesmo imposto e, por meio do gasto público, com devoluções, que agora podemos fazer, mas não podíamos há 30 anos, devolver para os pobres. Apresentamos o IVA-P em 2011.

Você pode devolver através de um Bolsa Família, por meio de cartão, pela compra com fatura eletrônica, por muitos caminhos. Quase todos os países estão em condições de fazer essa devolução.

O Brasil tem tudo isso. Dou a ele um Bolsa Família que inclui o que é pago de IVA. Com isso mitigo, pelo menos até o nível de pobreza, o problema da equidade. No Equador, as pessoas mais velhas ou com deficiência têm de colocar o número do comprador [como um CPF], e aí não se fatura o IVA. No Uruguai se faz com um cartão. Há uma discussão se deve ter limitações ou não. Eu limitaria a devolução a algumas coisas, como alimentos e medicamentos.

O governo fala na possibilidade de ter um valor fixo de devolução para todos os brasileiros, o que beneficia proporcionalmente a baixa renda.
Não há problema. Eu preferiria devolver apenas aos decis mais baixos [população mais pobre], e assim devolver mais. Por que vou devolver aos decis com nível de renda europeu? Se devolve aos três primeiros decis [30% mais pobres], acaba com o efeito regressivo do imposto.

Como fazer a devolução aos que estão fora dos sistemas de proteção do governo?
Um país que não conhece seus pobres não é um país. O Brasil tem capacidade técnica de sobra a nível tecnológico e na administração tributária. O Rio Grande do Sul já implantou esse sistema.

É necessário ter um imposto único para que esse modelo funcione?
O Brasil está fazendo um grande esforço para pagar esse pecado original de ter adotado esse imposto primeiro, mas ter posto a nível subnacional. Quando se faz isso, há dois problemas: os grupos de interesse que são afetados pela reforma e o financiamento dos estados. Há duas propostas muito boas, a PEC 45 e a PEC 110, que apresenta um IVA Dual, que se aplica a vários países, como o Canadá.

Como o senhor avalia as alíquotas diferenciadas para serviços e agronegócio que podem entrar nessas propostas?
São negociações políticas. Você pode escalonar. O mais importante é que tudo esteja taxado. Se você me diz que a alíquota vai ser 23%, alguém pode sair de 12% e após dois anos sobe para 15%, tudo escrito em pedra. Alguns vão pagar mais. Outros, menos, mas todos vão pagar. Acabam os benefícios, a taxa zero. O problema das desonerações é que vão mandar ao Parlamento 5 e vão devolver 50.

Entendo a defesa dos serviços, mas é natural que sejam taxados da mesma maneira que os bens. No futuro, a diferença entre serviços e manufaturados pode deixar de existir, vai ser difícil distinguir.

Cada vez o agro está se industrializando mais, e os serviços entram cada vez mais nessa cadeia. Se o Brasil desonerar o agro, todos os bens e serviços comprados e taxados vão entrar no custo. O que o agro não entende é que ser taxado com IVA os protege da competição internacional No Uruguai, começamos a generalizar o IVA, e o agro começou a protestar. Muitas frutas e verduras vinham da Argentina. Tinham IVA, mas, quando eles exportavam, elas vinham livres do imposto e competiam com os uruguaios.

O agronegócio quer ser desonerado e ainda receber o crédito de imposto dos insumos de volta.
Se aplicarmos isso a todos os setores, não vamos ter arrecadação. É preciso vencer a resistência de alguns grupos importantes, como serviços, agro, municípios maiores. É importante que o Brasil ganhe eficiência.

Imagine o que vai ser a negociação de um acordo com a União Europeia se há um tratamento desigual ou privilegiado para um setor, como a agricultura. Se o Brasil quer se integrar ao mundo, tem de corrigir sua tributação.

Não se pode entrar na UE se você não tem um IVA. Chile, Uruguai e Bolívia têm um IVA espetacular. É um imposto para economias abertas, o imposto do comércio livre e justo. Não devolvo [ao exportador] nenhum peso a mais do que o de imposto de todas as compras [tributadas] com IVA.

“Quando a renda está concentrada, o consumo também está. Quando desonero, quem consome a maior parte desses bens são os ricos”.

Alberto Barreix – Consultor do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e do Ciat (Centro Interamericano de Administrações Tributárias). Foi economista-chefe da área fiscal do BID, quando esteve encarregado de programas de assistência e reforma tributária na América Latina e Caribe. Foi professor nas Escolas de Governo e Direito da Universidade de Harvard, coordenador do Comitê de Política Fiscal do Mercosul e diretor do Departamento de Estatística e Política Fiscal do Ministério da Economia e Finanças do Uruguai. É doutor em administração pública pela Kennedy School of Government e em tributação internacional pela Harvard Law School.

Fonte: Folha de S.Paulo