Especialistas defendem taxação de lucros e dividendos

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Luís Eduardo Gomes

Especialistas debateram uma proposta de reforma tributária solidária em lançamento de livro da Assembleia Legislativa, em Porto Alegre

Durante toda a tarde de terça-feira (14), uma série de especialistas em tributação, do Brasil e de outros países da América Latina, participaram de painéis a respeito da reforma tributária no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. O evento fez parte do lançamento do livro “A Reforma Tributária Necessária – Diagnósticos e Premissas”, um calhamaço de cerca de 800 páginas que defende a ideia de que a discussão sobre o tema deve priorizar uma inversão da lógica de tributação atual, isto é, onde se cobra muitos impostos indiretos (sobre o consumo) e poucos diretos (sobre a renda), o que garante vantagens a quem está no topo da pirâmide social. “O Brasil é um paraíso fiscal dos grandes ricos”, destacou o auditor fiscal federal Pedro Lopes de Araújo Neto, diretor do Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital), entidade que ajudou a organizar o evento do lado do Instituto Justiça Fiscal (IJF) e da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Anfip).

Coordenador do trabalho, o professor Eduardo Fagnani, da Unicamp, explica que mais de 40 especialistas contribuem com a obra, que tem por objetivo subsidiar e fomentar a discussão sobre o sistema tributário brasileiro, ao mesmo tempo que se contrapõe ao que considera uma visão que já estaria sendo defendida há mais de duas décadas, de que a reforma tributária deve focar na simplificação de impostos. “Qual o problema disso? É que não enfrenta a questão crucial, que é a desigualdade. A segunda questão crucial é que, quando você acaba com várias contribuições e cria uma só, o IVA (impostos sobre valor agregado), essas contribuições são constitucionalmente vinculadas ao financiamento da Previdência Social, então você acaba com o financiamento da proteção social. Além de não enfrentar o problema da desigualdade, você acaba com a proteção social”, diz.

O livro, que será seguido por uma nova publicação trazendo sugestões de medidas a serem tomadas, apresenta como diagnóstico a necessidade de o Brasil implementar uma reforma tributária a partir de oito eixos: a perspectiva de desenvolvimento econômico e social; fortalecimento do estado de bem-estar social; avanço na promoção da progressividade, com aumento da tributação direta que incide sobre a renda e o patrimônio das camadas mais ricas; redução da participação da tributação indireta, que incide sobre o consumo, na arrecadação total; restabelecer as bases de um equilíbrio federativo; considerar a tributação ambiental; aperfeiçoar e resgatar o papel da tributação sobre o comércio internacional como instrumento de política de desenvolvimento; e fomentar ações que resultem em aumento da arrecadação, pela revisão das renúncias fiscais e aperfeiçoamento dos instrumentos de combate à sonegação e evasão.

Fagnani destaca que, se somadas, as isenções fiscais concedidas pela União (cerca de R$ 370 bilhões) e a sonegação tributária (cerca de R$ 500 bilhões), o valor que o Brasil deixa de arrecadar com impostos se aproxima dos R$ 900 bilhões, isso sem contar que estados e municípios também concedem benefícios fiscais. Para efeito de comparação, todos os entes federativos somados arrecadaram R$ 2,2 trilhões em impostos em 2017. “O que se deixa de arrecadar corresponde a 65% da receita tributária federal e a 50% da receita tributária se você somar União, estados e municípios”, diz o professor.

O segundo trabalho coordenado por Fagnani, que será lançado entre o final de agosto e o início de setembro, sugere medidas de aumento de tributação da renda, patrimônio e transações financeiras que poderiam resultar em um aumento de R$ 400 bilhões na arrecadação. Por outro lado, sugere cortes de impostos sobre o consumo e folha salarial da ordem de R$ 280 bilhões.

Na questão do imposto de renda, por exemplo, a sugestão é que pessoas com renda de até quatro salários mínimos sejam isentas do IR, adote-se alíquotas progressivas para quem receber entre 5 e 25 salários mínimos, a manutenção da alíquota maior atual (27,5%) para quem recebe até 40 salários mínimos, uma nova tarifa de 35% para quem ganha entre 40 e 60 salários mínimos e uma outra de 40% para aqueles com vencimentos acima de 60 salários mínimos. “Isso ainda muito abaixo dos países europeus, alguns deles chegam até a 60%. Mas, se você fizer isso, uma coisa que vai penalizar somente 750 mil declarantes num total de 27 milhões, que vão pagar mais imposto, você pode ter um aumento de quase R$ 180 bilhões”, afirma Fagnani.

O professor destaca que as propostas dos especialistas buscam reduzir a participação dos impostos sobre o consumo na arrecadação total dos atuais 50% para a casa dos 35%, próximo da média da OCDE (34%) e, mesmo aumentando a tributação sobre a renda, ainda manter a carga tributária geral do País abaixo dos 35% do PIB, que é a média da OCDE (hoje está na casa dos 32%).

Na mesma linha, o auditor Pedro Lopes de Araújo Neto destaca que a percepção de que a carga tributária brasileira é alta não deixa de ser verdadeira, mas isto devido ao fato de que, na comparação com os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil — que ainda não é membro da entidade — seria o segundo que mais tributa bens em serviços. Por outro lado, diferentemente dos países desenvolvidos, não lucros e dividendos e mesmo os impostos sobre a renda são mais baixos do que a média. “Quem paga imposto de renda no Brasil é a classe média assalariada. Os empresários pagam muito poucos impostos”, diz.

Ele destaca que o próprio Estados Unidos, que é sempre citado como um país de baixos impostos, tributa em até 50% a renda e o patrimônio dos seus contribuintes. “O Brasil tem uma fórmula inversa. Por ele cobrar muito pouco da renda, vai cobrar do consumo. Se o empresário não paga, quem vai pagar é o trabalhador”, diz.

Exemplo de outros países

O professor e economista aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Jorge Abrahão, diz que, na verdade, não existe uma fórmula secreta que determina que se deve taxar mais a renda do que o consumo, mas que ao se observar as experiências internacionais dos países que possuem menos desigualdades, verifica-se que eles adotam modelos mais progressivos de tributação.

“Em Ciências Sociais e em Economia é importante a gente ver os casos de maior sucesso. Lá você tem de fato um equilíbrio entre imposto de renda e tributação sob consumo. Tentar baixar um pouco o imposto sobre o consumo e ampliar sobre a renda, acho que esse é um elemento”, diz Abrahão. “Grande parte da população brasileira nem percebe que paga imposto. Principalmente os mais pobres, e estamos falando de 80% da população brasileira, não chega nem a pagar imposto de renda. Mas sobre cada produto que ela compra, paga imposto, só que isso ela não perceba. A ideia de a gente paga muito imposto é muito um discurso de quem paga pouco imposto. Aqueles que estão no topo da pirâmide, em termos relativos, a alíquota que recai sobre a renda deles é quase nula, mas eles têm um discurso de quem paga muito imposto”.

O economista também defende que é preciso voltar a se tributar lucros e dividendos, que passaram a ser isentos de impostos no Brasil em 1995. “É inaceitável que isso continue, até porque esses lucros e dividendos não cumprem papel nenhum, a não ser para a especulação e permanência patrimonial de um conjunto muito pequeno da população brasileira. É preciso corrigir isso aí”, diz.

Combate à discriminação

Em janeiro deste ano, a Oxfam divulgou um estudo apontando que as cinco pessoas mais ricas do Brasil possuem um patrimônio equivalente ao de 100 milhões de brasileiros. Coordenador de campanhas da Oxfam Brasil, Rafael Georges aponta uma reforma tributária progressiva como a principal e mais urgente medida que pode ser tomada para a redução da desigualdade no Brasil. Além disso, ele defende que o enfrentamento da desigualdade passa pela revogação do teto de gastos do governo federal, o que para ele cria uma competição entre gastos sociais, a revogação de partes da reforma trabalhista que resultariam na precarização da condição dos trabalhadores e uma forte agenda de investimentos em educação.

Além disso, afirma que é preciso enfrentar as desigualdades que são de natureza discriminatória, isto é, o fato de as mulheres e os negros receberem abaixo do que ganha um homem branco nas mesmas condições. “Acho que existe uma agenda fortíssima no Brasil e na questão da discriminação contra a mulher. A mulher chega em determinado nível da sua carreira ou da sua trajetória e não consegue ganhar mais, porque ela tem que cuidar dos filhos, seja ela de classe média, classe alta ou classe baixa. Ela fica em casa, reduz a sua renda e tem menos poder”, diz. “Quanto aos negros, toda hora que você vai tentar explicar, seja porque os negros têm menos estudo, seja porque têm menos acesso à universidade, conforme você vai confrontando esses dados, chega à conclusão que tem diferenças que só o racismo explica. Um médico negro ganhar 80% do que ganha um médico branco, só o racismo explica. Ninguém admite racismo, mas ele está aí. A gente tem que assumir isso de uma vez, sim, o Brasil é racista, e vamos fazer políticas para corrigir essa anormalidade histórica”.

Fonte: Sul 21