Anjos da solidariedade

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Estávamos no final do mês de novembro de 1988. Formávamos um grupo de oito fiscais lotados no serviço externo, em Criciúma, no sul de Santa Catarina.

 Nosso chefe de grupo fiscal convocou-nos para a reunião de final de mês, onde seria definida a estratégia de ação fiscal para o mês seguinte.

Subi com dificuldade as escadarias que me levariam ao terceiro andar da Agência do INSS, onde seria realizada a reunião, pois já me encontrava no sétimo mês de gestação do meu segundo filho.

Cheguei ao local ofegante, mas muito feliz, pois iria reencontrar meus colegas, trocar experiências e renovar a nossa amizade.

Na chegada, todos estavam saudosos. O bom humor era contagiante. Houve muita brincadeira, abraços e apertos de mão.

O chefe iniciou a reunião: nossas metas eram arrojadas; tínhamos muitas visitas para realizar. A operação, mais conhecida por “Porta-a-Porta”, consistiria em detectar os empregados sem registro e a quitação das guias de recolhimento de empresas, nas principais cidades do sul de Santa Catarina.

Chegou a hora da distribuição da carga de trabalho: fiquei gelada! Caberia à minha Junta Fiscal atuar na cidade mais distante de Criciúma: Praia Grande, quase na divisa com o Rio Grande do Sul, a mais de 100 quilômetros de nossa sede. Fiquei pensando comigo mesma: — Como faria se o bebê chegasse antes do previsto? E se não houvesse assistência médica na cidade? Deus, eu não queria correr estes riscos tão longe de casa! Havia outras opções de cidades, como Meleiro, que ficava a menos de 40 quilômetros de Criciúma. Tentei negociar com a chefia de grupo: nada resolvido. As cidades já estavam definidas e todos os outros colegas ficaram satisfeitos com as suas cargas de trabalho.

A reunião terminou. Todos foram saindo da sala. Fiquei lá sozinha, sentada, inerte, com mil preocupações na cabeça. Meu lado profissional e feminista dizendo: — Não faz mal, você vai dar conta; gravidez não é doença; mulher pode fazer tudo o que homem faz; não é a sua primeira gravidez e na anterior você já enfrentou situações difíceis. Porém, meu lado mãe, fragilizado pelo final da gestação gritava: — Você não deve ir, é muito arriscado. Não é só a sua vida que está em jogo, mas a do bebê também.

O problema parecia insolúvel.

O que fazer? De repente me senti ofuscada por uma luz intensa que vinha da porta da sala. Procurei enxergar melhor e vislumbrei duas figuras que se assemelhavam a anjos. De suas mãos parecia emanar ondas de uma energia que foi espalhando-se por todo o ambiente, tornando-o inundado de paz e calor humano. Eu parecia flutuar. A sensação era maravilhosa. Só consegui voltar ao meu estado normal quando percebi que ao meu lado estavam dois de meus colegas, um deles dando tapinhas no meu ombro e dizendo: — Bete, o que há com você? Viemos trazer-lhe ótimas notícias. Já conversamos com a chefia de grupo e estamos dispostos a trocar a nossa carga de trabalho, que recaiu em Meleiro, pela sua. Assim você não terá que rodar tantos quilômetros. Não é ótimo? —Disse ainda que fariam isto com a maior boa vontade, pois não poderiam ver uma colega na situação em que eu me encontrava se arriscando tanto nas estradas.

Deus, como era bom poder contar com pessoas tão sensíveis e solidárias no meu-grupo de trabalho! Agradeci, emocionada, dizendo-lhes que jamais esqueceria aquele gesto. E realmente jamais irei esquecer, agora mais do que nunca, pois, neste conto, vou poder deixar registrado este agradecimento aos meus queridos colegas: Décio e Jaior. Eles foram os anjos da solidariedade que me propiciaram concluir aquele trabalho com tranquilidade e segurança. Dizem que na gestação a mulher fica em “estado de graça”, e realmente isto deve ter fundamento, pois em todas as minhas dificuldades daquela época, Deus parecia se fazer presente. Como explicar aquela experiência de luz, anjos e flutuar, num momento tão difícil?

Hoje estou distante dos meus colegas-anjos, mas eles estarão sempre em minha lembrança, com carinho e gratidão. Deram um belo exemplo de despojamento, sujeitando-se a aceitar uma carga de trabalho que envolvia uma distância e gastos bem maiores, sem nenhuma obrigação funcional que lhes exigisse tal gesto, mas apenas em prol de serem solidários com uma colega em dificuldades.

Espero que em nosso imenso Brasil, onde o trabalho de fiscalização tantas vezes se mostra árduo e difícil, muitos anjos da solidariedade se revelem entre nossos colegas, ajudando-nos a cumprir não só a nossa missão de Fiscais, mas principalmente a de seres humanos, irmãos nesta jornada terrena.