Escândalo fabricado? (Luiz Cláudio Martins)

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Depois de várias manifestações indignadas a partir do vazamento de um relatório interno da Receita Federal do Brasil (RFB) acerca de um processo que envolve o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e sua esposa, percebemos que o vazamento em si já não é mais o tema de interesse, mas o trabalho do Auditor Fiscal e da RFB.

Até a administração da Receita expressa juízo de valor que não lhe compete quando critica os termos utilizados pelo Auditor Fiscal que elaborou o dossiê e, pior, afirma que os crimes apontados no documento não estariam amparados pelas informações colhidas durante a análise. O Auditor Fiscal responsável pela seleção tem por obrigação relatar todos os dados que ele entender como importantes para subsidiar um eventual procedimento de fiscalização. E da forma que ele entender mais apropriada. Ainda mais quando ele está utilizando um documento teoricamente sigiloso, ao qual somente sua chefia, a chefia do setor de fiscalização e o Auditor Fiscal encarregado da fiscalização terão acesso.

E apenas o Auditor Fiscal que procederá a fiscalização tem a competência legal de verificar se as indicações contidas no dossiê procedem ou não. Caso procedam, ele lançará o crédito tributário correspondente, representando a quem de direito, caso entenda que existem ilícitos penais relacionados. Por sua vez, os órgãos competentes, verificando a confirmação das suspeitas de crimes, encaminham a obrigatória denúncia ao Judiciário.

Na última quarta-feira (13/2), matéria publicada na Conjur revelou que o presidente do Conselho Federal da OAB teria solicitado ao secretário especial da RFB, Marcos Cintra, esclarecimentos acera da “extensão e métodos usados nas apurações”. Na véspera, a Conjur publicou reportagem com base no conteúdo de mais um documento interno vazado: a Nota RFB/Copes nº 48/2018, cuja manchete foi “Receita Federal investiga secretamente 134 agentes públicos” – como se uma investigação eficiente pudesse ser pública. Ressalte-se que o documento vazado é classificado como reservado, estando restrito apenas a algumas pessoas dentro da RFB. Cai no esquecimento o que deveria ser apurado, que é o vazamento de documentos restritos, e o grande escândalo que vem sendo fabricado se baseia na pretensa intenção da Receita de investigar ilícitos de natureza penal.

A tese levantada pela entidade representativa da categoria dos advogados é que a investigação de agentes públicos por uma equipe especial antifraude da Receita Federal, destinada a investigar lavagem de dinheiro, corrupção, fraude, etc., extrapolaria suas competências. Discordamos.

Todos os ilícitos citados pressupõem desvio de tributação. No caso do receptor de propina declará-la e recolher os tributos devidos, não há interesse para a administração tributária, mas é obrigação de todo servidor público representar a ocorrência aos órgãos competentes.

Hoje, no âmbito da Receita, toda fiscalização é precedida de um procedimento de seleção, que nada mais é do que a verificação da existência de indícios consistentes que justifiquem a abertura de procedimento de fiscalização. No relatório da programação – lembrando que é um documento sigiloso, só acessível aos diretamente envolvidos no processo -, o Auditor Fiscal aponta os indícios e registra suas impressões, utilizando-se da redação que ele entender melhor, sem as preocupações que naturalmente teria ao redigir um documento público.

Interessante notar que a Equipe Especial de Fraudes foi montada em maio do ano passado, para que, no combate a determinados ilícitos, o órgão não dependesse de outras instituições para iniciar as apurações e “caso encontrasse indícios de crime fora do campo tributário, a orientação será encaminhar o caso para o Ministério Público e a Polícia Federal”*. Na época, as reações dos mais diversos setores da sociedade foram de considerar positiva a iniciativa da RFB. Aliás, eram tempos de aplausos para medidas de cunho punitivista.

A Anfip defende a autonomia do Auditor Fiscal no desempenho de suas atividades como premissa fundamental para um desempenho republicano da Receita Federal do Brasil e repudia a tentativa de criminalizar quem apenas cumpria suas obrigações da forma que lhe foram determinadas.

* https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/05/11/interna_politica,680002/receita-federal-cria-grupo-para-investigar-800-agentes-publicos.shtml

Luiz Cláudio de Araújo Martins é Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil e vice-presidente de Política de Classe da ANFIP